sexta-feira, 21 de março de 2008

Como vai ser quando eu crescer...


Mãe, como vai ser quando eu crescer? Nunca mais vou chegar a casa com os joelhos esfolados, as meias enroladas até aos tornozelos, o cabelo desalinhado, os berlindes a cair dos bolsos das jardineiras e os meus pedaços de madeira, as pedras do jardim e as caixas e caixinhas — vazias de nada e cheias de tudo — passarão à condição de lixo puro.
Um dia destes, em meados de Setembro, daqui a alguns anos, irás comigo à Papelaria Valentim, propriedade da D. Conceição, que teima furiosamente em depositar na minha face dois estridentes e molhados beijos, os quais estou proibida de limpar com a palma da mão. Espero que nessa altura já possa ter, como a mana, cadernos de mil e uma cores, decorados com peixes, cavalos marinhos e corais, quase tão bonitos como o teu sorriso.
A mana diz que eu estou sempre a pedinchar, que hoje em dia os miúdos são uns privilegiados, mesmo aqueles que ainda usam fraldas. Acho que aprendeu esta palavra lá na escola dos grandes, porque desde a semana passada até o cão da vizinha do r/ch é um privilegiado. Como se os nossos sete anos de diferença dessem-lhe um estatuto muito diferente do meu. A única diferença é que ela já usa soutien e tem um aparelho nos dentes e os poucos que ainda tenho o pai diz que vão cair.
Quando for grande vou mexer na prateleira que está por cima da sanita, na caixa de algodão para os arranhões e vou saber ler os rótulos dos frasquinhos com pedrinhas e vidros coloridos, que todos teimam em chamar de comprimidos, mas que para mim não passam de smarties.
Nessa altura já saber-me-ei defender dos aviões de papel, das fisgas, dos tubos de plástico com azeitonas e das boladas do Carlos do quinto andar, que deixam-me assustada.
A mana já lava a loiça — talvez no futuro tenhamos cá em casa a máquina de lavar igual à do anúncio da televisão — mas tu nunca deixas-me mexer na água, que eu tanto adoro. Queria muito ter umas botas de borracha, como os outros miúdos, para poder chapinhar à vontade mas tu não deixas, dizes que o calçado de borracha faz mal aos pés, sobretudo a pessoas como eu, que sofrem de pé chato.
Às vezes agarro-me às tuas pernas — as maiores do mundo — e à tua saia, que cheira sempre tão bem, e tu olhas-me aí de cima, fazes cara feia por entre frigideiras, escumadeiras, espátulas e ovos temperados com pouco sal e dizes-me com ar zangado que não posso estar perto de ti quando estás ao fogão, que pode ser perigoso.
Mas como é que pode ser perigoso? Nada é perigoso quando estás perto de mim, nem mesmo quando o vento assobia e empurra os fantasmas, como o primo João diz para irritar-me. Sabes porquê? Porque és a minha mãe.

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