sábado, 22 de março de 2008

Uma História de memórias


Lá fora a chuva cai miudamente, de mansinho. Lentamente, muito lentamente, abro um olho. Depois o outro. Mas o frio demove-me. A pouco e pouco mergulho no doce reino dos sonhos de algodão.
Corria o ano de 1960, numa pacata vila dos arredores de Lisboa, banhada pelas águas da margem direita do Tejo, numa época em que os habitantes ainda iam a banhos na ribeira dos Caniços e em que 15 caixotes do lixo, eram suficientes para as necessidades de limpeza urbana da terra.
Há muitos séculos atrás, D. Martinho, um nobre de Portimão, recebeu o Morgado das mãos d’el rei D. Afonso III.
Local com muitas salinas e pântanos rodeados por fluidos mortos, o vilarejo tomou o nome de Póvoa. A “Santa Iria” só seria incorporada na toponímia, séculos mais tarde, fruto do lobby das beatas da paróquia, que insistiram através de fervorosos sussurros, junto do senhor prior, na devoção da dita santa.
Em anos idos pertenceu ao concelho de Loures, já foi um grande pólo de desenvolvimento industrial e hoje é um dormitório, encravada entre a auto-estrada do Norte e o IC2, poluída por imponentes torres de betão que nem o Plano Director Municipal conseguiu travar. A população hoje são forasteiros que com o passar dos anos se tornaram nos residentes oficiais dos bairros da Quinta da Piedade e do Casal da Serra.
Mas voltemos um pouco atrás no tempo. Era uma vez uma casa amarelo pálido — a única que tinha uma palmeira plantada no jardim, para inveja de todas as outras — com empregadas de farda preta e branca e meninos com cabelo quase tão branco como o mais puro dos algodões. Os risos e gargalhadas dos petizes povoavam os jardins, brincando inocentemente com armas de guerra, aviões de papel, baloiços, escorregas e caixas coloridas, sob o olhar atento da nunie contratada por Madame Gotzen.
Monsieur Gotzen nasceu em Bruxelas e formou-se em Química, na Universidade da Solvay. Os dezanove valores de nota final de curso, explicam a presença permanente no Quadro de Honra da escola. Após um estágio na fábrica da Solvay, em Bruges, foi transferido com a incumbência de dirigir os destinos da Soda Póvoa, que nos anos 70 seria adquirida na totalidade por capital belga. O seu tempo era passado no escritório — com janelas rasgadas para o céu — donde comandava os destinos a partir da sua secretária escura, de pau-santo original, herança do último Senhor Director da fábrica.
A adaptação da família não foi fácil, Madame Gotzen queixava-se dias a fio do calor e da ausência das amigas de solteira, isolando-se do mundo na estufa repleta de begónias escarlate e alvos amores perfeitos, salpicados por ânforas e corais, souvenirs da viagem à Africa do Sul, no Verão de 57.
Christian, o filho mais velho, pregava endiabradas partidas e escondia-se para desespero da menina Emília, a professora de francês, jovem de boas famílias mas que por infortúnio do destino, ou pura falta de jeito, não tinha conseguido arranjar um casamento de conveniência.
No dia 2 de Fevereiro, em virtude da cozinheira Francisca ter adoecido, Monsieur Gotzen colocou um anúncio na Gazeta da Póvoa, o único mass media num raio de 20 quilómetros, com uma tiragem de 400 exemplares, explicada pelo facto de que 70% da população não sabia ler nem escrever, o chamado analfabetismo primário.
Entre os entrevistados encontrava-se um único homem. Mário, era um rapaz franzino, com a pele curtida pelo sol e pelas amarguras da vida mas que não escondia um certo ar de rufia, talvez explicado pelos anos de convivência com os outros campinos da Lezíria de Vila Franca.
De repente, acordo. Estremeço perante a amargura de estupidamente o relógio ter avançado, sem pedido de autorização prévio, para as 7.30.

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